Ao mesmo tempo que muitos defendem a retirada dos académicos das esferas da direção e gestão universitárias, por serem considerados amadores e, pretensamente, para não desperdiçarem os seus talentos e assim poderem ser mais produtivos na educação, investigação e interação com a sociedade, assiste-se a um cada vez maior controlo e a uma regulação burocrática aumentada no desempenho das atividades em que são considerados especialistas. Por outras palavras, incapazes de se governarem, os académicos também não poderiam ser deixados à solta, seja em termos de produtividade e de relevância do seu labor, seja em termos de avaliação e escrutínio sistemáticos das atividades diversas que desempenham.Este cenário, que será plausivelmente rejeitado, como hiperbólico, pela maioria das autoridades universitárias, emerge com extraordinária força nos discursos e nas ações quotidianas de uma grande parte de professoras/es e investigadoras/es, bastando para isso permanecer atento e estar no terreno.
Os académicos sentem uma intensificação do seu trabalho sem precedentes e, por vezes, até aos limites do esgotamento físico e psicológico.
Essa intensificação resulta não apenas de uma competição desenfreada (e que é politicamente induzida) e da maior diversidade das tarefas que lhes são exigidas. Resulta também de novos instrumentos de vigilância e de controlo informático por parte de uma hiperburocracia capaz de penetrar em todas as áreas da cultura académica e de alterar profundamente o clima de trabalho e de convivência, as relações sociais, a gestão do tempo, a possibilidade de encontro, de diálogo e de cooperação, a solidariedade e a entreajuda, e até a própria identidade profissional. Tudo isso, paradoxalmente, em nome da gestão da qualidade, de uma maior responsabilidade e prestação de contas, da avaliação do desempenho docente que nos haverá de conduzir à melhoria das nossas práticas pedagógicas.
Os “terrores da performatividade”, através dos mais diversos instrumentos de mensuração, bibliométricos e outros, produzem mais hierarquias e são responsáveis por uma competitividade degenerada que proletariza, apouca e menoriza aqueles que, contraditoriamente, a visão gerencialista apresenta como recursos humanos dotados de sofisticadas competências e habilidades economicamente valorizáveis.
Não é, na maioria dos casos, de uma avaliação por pares e de natureza predominantemente formativa que se trata, mas de um poderoso instrumento contábil e de controlo, produtor de conformidades várias segundo padrões em cuja produção, aparentemente, todos participaram, mas que, uma vez em vigor, nos desagradam e motivam queixas por parte de quase todos.
Não são apenas os critérios e as regras, a sua codificação através de plataformas eletrónicas, a generalização de certas categorias mentais inscritas nos programas, aparentemente neutros e apenas técnicos. São ainda as falhas e as omissões, a escassa aposta no caráter amigável das ferramentes, a aprendizagem de instrumentos a que muitos se recusam e que motiva cursos de formação a que outros acedem, raramente com convicção, o tempo dedicado aos processos subitamente transformados em fins, em certos casos, como o da avaliação de desempenho, sem que os pressupostos políticos que foram negociados sejam respeitados e sem que ocorra a respetiva possibilidade de mudança de escalão e de valorização salarial.
Entretanto, as percentagens legalmente estabelecidas para professores catedráticos e associados estão longe de ser atingidas, sendo previsível o seu aumento percentual (muito mais do que o seu número efetivo), a partir do momento em que se concretize o aumento de docentes convidados, até atingirem 20%, tal como se encontra programado. Isto irá necessariamente levar ao aumento da precariedade de alguns, mas não, necessariamente, à qualidade do trabalho científico e pedagógico nas condições de autonomia atrás referidas.
Transformar a Universidade num inferno da racionalidade técnico-instrumental não só parece pouco educativo, e oposto ao ideal pedagógico de uma “educação integral”, como não garante melhores docentes e melhores aulas para os estudantes, nem sequer a generalização de uma investigação e produção científicas de acordo com elevados “padrões”, de resto pouco compatíveis com as pressões produtivistas, a imposição de critérios universais, a falta de tempo para pensar, ler, estudar, discutir, ponderar, experimentar, testar…que associávamos à fabricação taylorizada, mercadorizada, frequentemente baseada no controlo hierárquico do trabalho dos outros e na sua alienação.
Não vale a pena tentar a solução fácil, e usual, de associar estas críticas ao “medo” da avaliação, da exigência e do rigor, da qualidade e da excelência académicas. O que afirmamos é que muitos dos instrumentos que pretendem induzir, facilitar ou promover tal qualidade exigem urgente ponderação e revisão, debate alargado e sem o dogmatismo que, recentemente, pôde ser observado - por exemplo a propósito das vantagens do regime fundacional -, não vá a criatura dominar o seu criador e disseminar a descrença e o desânimo, reduzindo a puros automatismos tarefas que todos cumprem, de que todos se queixam amargamente, a que cada vez reconhecem menos legitimidade e utilidade, quando para além de limites razoáveis e de uma aquiescência já desqualificante e desprestigiante. É o que tem sucedido, de há muito, em variadas organizações, quando certas práticas de “gestão da qualidade total” se assemelham a processos de controlo burocrático on line, baseados na suspeição generalizada sobre os atores sociais, podendo, sob certas condições, evoluir para dispositivos de inspiração mais totalitária do que, apenas, tecnocrática.
Ora numa Universidade Cidadã, assente na liberdade e autonomia académicas, tal não será possível, ao contrário do que sucedeu já, historicamente, em tempos sombrios e em lugares não tão distantes de nós. É, por todas as razões, indispensável atribuir atenção e centralidade a certas matérias no Conselho Geral que, até agora, lhe têm escapado, ao abrigo de uma lógica que as remete para simples atos de gestão, quando, pelo contrário, está em causa muito mais do que isso: a modelagem de um ideal-tipo de novo académico, não através da discussão político-institucional do seu perfil, mas através da seleção de certos meios, regras e processos que, mesmo sem uma intenção definida ou planeada, poderão vir a resultar, perversamente, num universitário subordinado, mais ou menos subtilmente controlado, civicamente anestesiado, inseguro e reverente, temeroso do uso da sua autonomia académica.
A incontornável motivação de professoras/es e investigadoras/es, em tempos de acentuada crise e em contextos organizacionais predominantemente adaptativos, representa hoje um dos grandes problemas, pois sem académicos confiantes, criativos e mobilizados, capazes de correr riscos e de fazer ouvir as suas vozes, não há, simplesmente, verdadeira Universidade.
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