Por Manuel Jacinto Sarmento, Professor do Instituto de Educação
Da linguística estrutural à teoria da relatividade, dos
estudos feministas à epistemologia da complexidade, da sociologia urbana aos
estudos pós-coloniais, muitos dos grandes contributos das universidades para o
conhecimento contemporâneo nasceram fora do “mainstream”, do lugar onde
repousam os consensos e as práticas instituídas. A própria mudança das
universidades como instituições teve, historicamente, que ser feita a partir
não dos lugares da dominação mas dos espaços instersticiais da não
conformidade, do edifício de matemática da Universidade de Coimbra, aos campos
(duplamente periféricos) de Nanterre e de Vincennes. Em Coimbra, designa-se por
“tomada da bastilha” o fausto oitocentista, ainda hoje celebrado, da mudança histórica,
a partir de uma revolta estudantil, das práticas de gestão universitária.
É por isso que convém
olhar o futuro da universidade para além do que hoje se instituiu como norma
dominante: a modernização está lá, porventura, onde se procuram novas práticas,
outras lógicas e sentidos alternativos para a construção e transmissão de um
saber implicado com a construção do bem-estar social. Lá, onde a construção da
universidade é uma renovação da tradição académica e não a adoção dos processos
e das práticas que constituem os critérios de referência do desempenho
competitivo das empresas e dos mercados. Numa palavra, a modernidade e o
progresso da Universidade não se definem pela performatividade dos
desempenhos individuais, pelos rankings
de Xangai, pela avaliação da qualidade em formas estandartizadas, pelos guiões
de desempenho que rasuram a diferença, pelo controlo das opiniões que excluem o
incómodo da crítica, pela dependência de financiamentos que ocultam a gratuitidade
social do saber, pelos dispositivos de gestão tecnoburocrático que tendem a
considerar os processos democráticos de decisão como um desperdício, pela
hipervalorização da contabilidade dos produtos académicos que abstraem da sua
efetiva pregnância científica e relevância social.
Nos últimos tempos, movimentos como por exemplo o “slow
science”, ou o “champ libre aux sciences sociales”, ou ainda “citizen sciences”
abalaram universidades de muitos países do mundo; é, por lá, talvez, que
espreita a modernidade das universidades e das instituições científicas. É por
lá, certamente que perpassa um sentido verdadeiramente humano, verdadeiramente
comunitário e verdadeiramente social do trabalho académico e da vida nas
universidades. Estas são lugares de trabalho, de debate e de crítica. Os
“campi” são lugares onde se realizam concertos, onde o debate da atualidade é
permanentemente procurado, onde os rituais se tornam residuais ante o ambiente
convivial. O ensino é esse lugar onde o aprendiz toma, freirianamente, o lugar
do mestre, pelo incentivo à autonomia criadora e ao rigor da exposição
coletiva. A investigação é esse espaço do tempo certo para o pensamento, a
leitura, a aprendizagem e a descoberta. A administração é o lugar da escolha
entre opções distintas e projetos submetidos ao escrutínio coletivo. A vida em
comum é o espaço de encontros e desencontros moldados pelo sentido da
responsabilidade pública e do respeito das diferenças. Esse lugar, esse topos
(ou esse u-topus?) é o da universidade cidadã.
Sem comentários:
Enviar um comentário