A eventual passagem da UM a “fundação pública com regime de direito privado”, que o Reitor entendeu propor à deliberação do Conselho Geral, exige ponderação e discussão aprofundada.
O movimento Universidade Cidadã contribuirá activamente para esse debate, participando nas iniciativas conduzidas pelo Conselho Geral e também noutros momentos de auscultação da Academia que virão a ser organizados, apresentando as suas posições e os seus argumentos, congruentes com a carta de princípios na base da qual elegeu representantes dos professores e investigadores para o Conselho Geral e para o Senado Académico.
O presente documento representa um contributo para o referido debate, abordando o racional subjacente ao regime fundacional e as suas principais características genéricas, definidas pelo RJIES, bem como a proposta apresentada pelo Reitor ao Conselho Geral.
1. DAS PROPOSTAS DA OCDE (2006) À APROVAÇÃO DO RJIES (2007)
Constituindo a excepção, e não a regra, no contexto das universidades europeias, o modelo fundacional foi proposto pela OCDE, em 2006, para as universidades portuguesas, em relatório solicitado pelo XVII Governo Constitucional. Posteriormente, o RJIES, aprovado pelo Parlamento em 2007, adoptou várias soluções que haviam sido recomendadas pela OCDE, embora não todas, mesmo assim sob contestação de várias instituições e de muitos universitários que, então, se exprimiram publicamente.
Não é, por isso, possível compreender o racional político e organizacional do regime fundacional, consagrado pelo RJIES a título de opção institucional, à margem das influentes propostas da OCDE. A matriz construída por esta organização contemplava, entre outros elementos que não foram adoptados pelo legislador, mas que todavia conferiam congruência ao modelo original então apresentado, os seguintes: generalização do estatuto fundacional, com regime de direito privado; nomeação dos reitores; nomeação dos directores de faculdades e departamentos; maioria de membros externos no órgão máximo de governo; perda do estatuto de funcionário público para docentes e investigadores e para trabalhadores não docentes; não aplicação das regras da contabilidade pública.
A natureza mais radicalmente privada e empresarial do modelo proposto, que de resto dificilmente seria compatível com o princípio da gestão democrática expresso na Constituição da República e na Lei de Bases do Sistema Educativo, embora afastada, não significou o abandono da matriz proposta pela OCDE. É a ela que, sem dúvida, o RJIES vai beber, não deixando de adoptar muitos outros princípios com ela congruentes: regime fundacional como opção; perda de influência dos órgãos colegiais, por vezes remetidos para a condição de órgãos de consulta; concentração de poderes no Reitor; presidência do Conselho Geral por uma personalidade externa; reforço das lideranças individuais nas unidades e subunidades orgânicas; redução do número de órgãos de governo e deliberação; redução do número de académicos participantes nos órgãos de governo.
Neste contexto, o regime fundacional é assumido implicitamente pelo legislador como uma espécie de modelo ideal, e como elemento de “distinção” das instituições, mais próximo da matriz proposta pela OCDE. A tal ponto, que a Lei prevê a possibilidade de o Governo poder assumir a iniciativa de opção pelo regime fundacional, no caso da criação de novas instituições. E a tal ponto, ainda, que basta uma maioria absoluta dos votos do Conselho Geral para aprovar a solicitação ao Governo do estatuto de fundação, contrastando com a exigência expressa de uma maioria de dois terços para a aprovação de alterações aos estatutos da Universidade.
Especialmente com o regime fundacional, mas até mesmo sem ele, o RJIES foi bem caracterizado por um dos seus defensores, em 2008; segundo Vital Moreira, “[…] teremos menos órgãos, menos eleições, menos colegialidade, maior participação externa, mais responsabilidade perante o exterior. Se alguma coisa vai mudar profundamente com a reforma é claramente o sistema de governo”.
2. ALTERAÇÃO DO “MODELO DE GESTÃO” OU PROFUNDA “TRANSFORMAÇÃO INSTITUCIONAL”?
Com a reforma, o sistema de governo foi profundamente alterado, mas não exactamente em termos mais democráticos, de colegialidade e participação. Ao invés, a gestão democrática nas Universidades entrou em processo de erosão, sendo por uns considerada uma utopia política herdada de Abril e, por outros, uma irresponsabilidade em termos de gestão. Não surpreende, por isso, que a reforma tenha sido apelidada de tecnocrática e gerencialista por parte dos sectores mais críticos. Especialmente no que concerne à opção fundacional, numa “Tomada de Posição” subscrita publicamente por mais de 1500 académicos, de entre os quais conhecidos docentes da UM, incluindo apoiantes do actual Reitor e, até, um docente que, actualmente, é Vice-Reitor, afirmava-se, durante o processo de discussão do RJIES:
“Os signatários entendem que o estatuto jurídico que convém às universidades públicas portuguesas é o de pessoas colectivas de direito público, integradas na administração autónoma do Estado, dotadas de autonomia estatutária, científica, pedagógica, cultural, disciplinar, patrimonial, administrativa e financeira. E consideram que o modelo de fundação de direito privado é inadequado para um correcto enquadramento das instituições universitárias que integram a rede pública de ensino superior. Este modelo fundacional privado arrasta consigo perigos sérios de perda da autonomia universitária, de governamentalização (e até de partidarização) das universidades públicas, de desresponsabilização do Estado relativamente a este sector, de dependência das universidades/fundações relativamente ao poder económico. Poderia levar igualmente ao estrangulamento de áreas do conhecimento sem grandes possibilidades de retorno económico directo, fragilizando a cultura de base científica multifacetada, abandonando as Humanidades e as Ciências Sociais, comprometendo a capacidade de análise e de crítica da própria sociedade. Finalmente, poderia levar, em certas situações e em última análise, à privatização de actividades de ensino e de investigação que cabem às universidades públicas.”
Independentemente da manutenção daquela posição, ou da mudança de opinião de alguns protagonistas, que em todo o caso merece discussão, observe-se o alcance das críticas produzidas e dos “perigos sérios” que ali são sinalizados.
Em qualquer caso, o RJIES define com clareza o processo de transição de cada instituição, de “pessoa colectiva de direito público” para “fundação pública com regime de direito privado”. O artigo nº 129, nº 2, estabelece, sem margem para dúvidas, que cada instituição deve fundamentar a mudança para o regime fundacional em função das “vantagens da adopção deste modelo de gestão e de enquadramento jurídico para o prosseguimento dos seus objectivos”. E o número seguinte do mesmo artigo dispõe que “A proposta deve ser instruída com um estudo acerca das implicações dessa transformação institucional sobre a organização, o financiamento e a autonomia da instituição ou unidade orgânica”.
Ao contrário daquilo que vem sendo afirmado por alguns sectores de opinião, a adopção do regime fundacional está longe de constituir-se, apenas ou sobretudo, como uma alteração do “modelo de gestão” das universidades. Independentemente das mudanças significativas a esse nível, em termos de gestão financeira, patrimonial e de pessoal, do que se trata é de uma profunda “transformação institucional”, segundo a própria expressão adoptada no RJIES. Recorde-se que o acordo que vier, eventualmente, a ser firmado com a tutela, tendo em vista a transição para o modelo de fundação, abrangerá obrigatoriamente “o projecto da instituição, o programa de desenvolvimento, os estatutos da fundação, a estrutura orgânica básica e o processo de transição […]”. Para além de tudo isto, e tão ou mais relevante, do que se trata é também da alteração do estatuto jurídico da Universidade e das principais bases do seu modelo de governação, das relações com o Estado e entre os órgãos de governo actuais e o “Conselho de Curadores”, dos poderes de aprovação e homologação dos mais relevantes instrumentos de orientação política, entre outros elementos. Quem pretenda confirmar o que aqui se diz, poderá ler os estatutos das três fundações entretanto criadas. Por exemplo no caso da Universidade do Porto, o Decreto-Lei nº 96/2009, que a institui, afirma tratar-se de “um novo tipo de instituição”, e a página oficial daquela Universidade, na Web, apresenta o novo organigrama, encabeçado pelo “Conselho de Curadores” (cinco personalidades externas nomeadas pelo Governo, sob proposta da instituição), sendo muito significativo o lugar secundário para que é remetido o órgão colegial máximo de governo, democraticamente constituído, isto é, o Conselho Geral.
Nestes termos, procurar abordar a questão fundacional, ou justificar a sua adopção, sobretudo com base em argumentos técnicos, de gestão, de flexibilidade e de agilização de certos processos, por mais relevantes que sejam, representará um erro indesculpável em termos universitários; um acto de pragmatismo que poderá vir a ter elevados custos no futuro próximo, em situação de desresponsabilização do Estado pelos compromissos assumidos, de devolução de encargos às instituições, lançando-as à sorte do mercado, onde e para quem este exista.
É, pelo contrário, indispensável analisar todas as implicações, consideradas positivas e negativas, sem deixar de ponderar os impactos jurídicos, estatutários, de governação e de relação com o Estado, de vínculo e de gestão de carreiras do pessoal docente e não docente, entre outros elementos; e também mesmo o momento escolhido para abrir o processo, as circunstâncias e incertezas do tempo presente. Todos virão a afectar a natureza da Universidade, o seu futuro, e o nosso futuro nela.
Considerando que a diabolização política do regime fundacional não é intelectualmente aceitável, considera-se igualmente inaceitável o discurso épico, ou ingénuo, em torno das suas virtudes de gestão.
3. SE NÃO É PRIVADA, POR QUE LHE QUER VESTIR A PELE?
Uma pergunta genérica parece fazer todo o sentido: se a Universidade não é privada, por que razão lhe quer vestir a pele?
O RJIES (2007) frustrou as expectativas de muitos universitários que, há já vários anos, defendiam um aprofundamento autonómico das instituições, por via de um estatuto jurídico mais claro, que optasse pela administração autónoma do Estado, resolvendo as ambiguidades contidas na Lei de 1988 e resgatando as instituições da administração indirecta do Estado. Porém, não foi esta a via seguida no RJIES.
Com efeito, parece que de cada vez que no seio da Administração Pública se pretende reforçar a autonomia institucional e dotar as organizações, ou os projectos considerados prioritários, de modelos de governança mais avançados e ágeis em termos de gestão, se opta pela gestão privada e empresarial como paradigma. Há quem lhe chame “Nova Gestão Pública”. Trata-se, em muitos casos, de uma opção ideológica que associa imediatamente o domínio público à burocracia e respectiva ineficácia e ineficiência, ao passo que o domínio empresarial seria sinónimo de inovação e de boa gestão, contrariando em ambos os casos as teses weberianas. Daqui têm relevado as mais diversas soluções e estatutos mais ou menos híbridos, nem sempre acautelando o interesse público, a transparência na utilização dos recursos públicos e nos processos de decisão. A comunicação social tem feito eco de muitos exemplos, especialmente em tempos de crise orçamental, das parcerias público-privadas às empresas públicas, passando pelos hospitais-empresa, em que a “autonomia de gestão” tem sido associada, com certa frequência, a irresponsabilidade na gestão, partidarização das organizações e descontrolo nas finanças públicas.
Os tempos que vivemos parecem, de resto, pouco propícios a novos regimes, a negociações com o Estado, a compromissos estáveis; tudo se tem revelado, pelo contrário, líquido ou fluído, incerto e mutável, passível de corrosão ou de incumprimento, por mais elevada que seja a categoria jurídica do contrato ou da parceria, e por mais solene que seja o seu anúncio e a sua celebração. Não é por acaso que a maioria das reformas do ensino superior, em vários países, se integra num movimento mais geral de reforma neoliberal do Estado-providência, tendendo a aliviar este das mais pesadas responsabilidades em termos de provisão e conferindo-lhe novas funções de regulação e meta-regulação (Estado supervisor, ou gestionário, como tem sido apelidado em diversos estudos). Os apelos discursivos à intervenção do mercado e da sociedade civil, enquanto novos parceiros estratégicos e relativamente compensatórios face ao novo papel do Estado, são conhecidos, tal como o hibridismo das soluções jurídicas e organizacionais. A “privatização dissimulada” ocorre ao mesmo tempo que se mantém a natureza formalmente pública das instituições, introduzindo regras típicas do direito privado em várias áreas, bem como a criação de mercados internos.
Mas também em termos estritamente internos à Universidade, parece que corremos riscos: mal terminamos o processo longo e complexo de aprovação e operacionalização dos Estatutos, através dos respectivos regulamentos e da constituição dos órgãos das unidades e subunidades, e arriscamo-nos a voltar ao início. Quando urgia dar lugar à estabilização das estruturas para iniciar a fase mais política e estratégica do desenvolvimento dos nossos projectos, eis-nos, eventualmente, em processo negocial com a tutela e, depois, em novo processo estatutário. Alguém está em condições de garantir que tal processo se faria de forma célere, para acomodar o estatuto fundacional e o Conselho de Curadores aos novos Estatutos? Ao abrir-se um processo de revisão estatutária tudo dependeria, obviamente, da correlação de forças entre os distintos projectos em presença. Tudo, por isso mesmo, poderia vir a ser discutido e alterado, dos órgãos de governo ao Senado Académico, dos órgãos das Escolas aos órgãos dos Departamentos, etc., não obstante o que a Reitoria afirma, agora, preconizar. Provavelmente não deixaria de haver quem, legitimamente, quisesse reabrir certos dossiês, considerados mal resolvidos durante a última assembleia estatutária; ou reagir para procurar minimizar os impactos negativos que, para certas posições, o regime fundacional arrastaria consigo.
Pela primeira se vez se perceberia, em tal circunstância, a profundidade das mudanças que o regime fundacional acarreta, obrigatoriamente, em termos estruturais e de governação, para além daqueles que poderá induzir em congruência com o seu racional.
De entre os primeiros destaca-se a criação do órgão máximo, o Conselho de Curadores, com amplos poderes e composto por cinco individualidades externas propostas pela instituição (não se sabe por que órgão) e nomeadas pelo governo. Quem representaria este novo órgão, que encabeça o organigrama da instituição? Qual a sua legitimidade democrática? Quais as garantias de defesa inalienável da instituição, por parte de cinco indivíduos que lhe são externos? Quais os riscos de partidarização ou de conexão a interesses privados? Como pretender, através de uma definição formalista e ilusória, que este órgão seja apenas para a Fundação, enquanto o Conselho Geral seria para a Universidade, enquanto estabelecimento de ensino, face às competências alargadas do Conselho de Curadores no contexto de uma eventual “Fundação Universidade do Minho”? Não passaria a haver uma Fundação, por um lado, e uma Universidade por outro, enquanto entidades distintas, ou cindidas.
Seria, porém, ao Conselho de Curadores que caberia aprovar os Estatutos e apresentá-los à tutela para homologação. A Assembleia Estatutária, democraticamente eleita, apenas apresentaria propostas e o Conselho Geral perderia os actuais poderes de aprovar alterações aos estatutos.
O mesmo Conselho de Curadores passaria a homologar algumas das mais relevantes decisões do Conselho Geral, a maioria das quais, actualmente, não carece de homologação, nem por parte do ministro: planos estratégicos de médio prazo, e plano de acção para o quadriénio do mandato do Reitor; linhas gerais de orientação da instituição no plano científico, pedagógico, financeiro e patrimonial; planos anuais de actividades e apreciação do relatório anual das actividades; proposta de orçamento; contas anuais consolidadas. Homologaria, ou não, tais instrumentos com base em que legitimidade? E com base em que saber e conhecimento da instituição?
O mesmo Conselho de Curadores passaria a nomear e a destituir o Conselho de Gestão; e ainda a propor ou autorizar a aquisição ou alienação de património imobiliário da instituição e as operações de crédito (competências que cabem actualmente ao Conselho Geral). Também a decisão de destituição do reitor passaria a ser submetida à homologação do Conselho de Curadores.
Como se pode concluir, o Conselho Geral, que é actualmente o órgão máximo de governo e de mais elevada representatividade democrática da instituição, seria objecto de grande erosão, a favor do Conselho de Curadores, um novo órgão que apresenta uma grande centralidade política e em termos de poder de decisão, manifestamente contrastante com o seu défice de legitimidade democrática.
Insistir na ideia de que o estatuto de fundação pode reforçar a autonomia e a flexibilidade de gestão, facilitar a contratação de recursos humanos, ampliar oportunidades de financiamento e de interacção com a sociedade, sem proceder a uma análise séria dos impactos reais, não meramente potenciais, em termos de modelo de governação institucional, de democraticidade e representatividade, de equilíbrio e fiscalização de poderes, representa uma visão muito parcial ou focalista, talvez demasiado panorâmica, de cima para baixo, e apenas marcada pelas lógicas da gestão de topo.
O que é indispensável é a justificação clara das vantagens do modelo fundacional para a melhor realização da missão e dos objectivos da Universidade, mais centrada, portanto, nos fins do que nos meios. É fácil compreender algumas facilidades de gestão, quanto ao uso dos meios, mas bastante mais difícil é encontrar relação directa com os fins e a missão, pública, de uma instituição pública. Parece, com efeito, subentender-se que para ser mais pública e melhor realizar os seus objectivos públicos, a Universidade necessita de ser mais privada, no sentido de recorrer ao direito privado.
Pode ser que a contradição seja aparente, mas seria necessário esclarecê-la cabalmente e com exemplos concretos. De outro modo, corremos os riscos de adesão aos conceitos da moda, sem acautelar as suas implicações menos óbvias ou potencialmente negativas.
Quem é contra o “reforço da autonomia”, posição para a qual se pretende remeter os críticos da Fundação? Mas, por outro lado, como se pode afirmar que a opção pela Fundação reverteria necessariamente a favor de uma maior autonomia das unidades orgânicas da Universidade? Quem desconhece os movimentos em sentido oposto, recentralizando poderes na gestão de topo? E, a propósito, se a vontade de descentralizar o poder a favor das escolas é genuína, por que razão não se deram já passos significativos nesse sentido? São os actuais Estatutos que impedem tal concretização?
Em qualquer caso, é necessário saber de que autonomia falamos, quais os seus limites, quais os perigos de confundir autonomia com independência face ao Estado, quais os riscos de desresponsabilização do Estado, de subfinanciamento e de descapitalização das instituições. Tal tipo de autonomia representa uma devolução de encargos que passarão a ser compensados pelo protagonismo do mercado e, especialmente, pelo agravamento das contribuições das famílias e dos estudantes. Sobretudo nos 2º e 3º ciclos, de acordo com o relatório da OCDE para Portugal (2006), foi já assumido que as propinas se deverão aproximar tendencialmente do custo real por aluno. É o que se tem visto noutros países e, muito recentemente, em Inglaterra (Relatório Browne), até mesmo no caso do 1º ciclo, onde os cortes são de 80% no financiamento do ensino pré-graduado, exceptuando o chamado grupo “STEM”: Science, Technology, Engineering & Maths. É que a autonomia sem recursos pode corresponder a uma maior subordinação face a novos poderes e interesses, assim se transformando numa autonomia sitiada e, em muitos casos, em heteronomia. Pode, como tem acontecido na Europa, conduzir as Universidades para a comercialização de muitas das suas actividades e para a sua empresarialização. Esta tendência para a mercantilização sairá reforçada pelo regime fundacional e respectiva venda de bens e serviços. A Universidade passará, progressivamente, a actuar como uma espécie de produtor mercantil, com grandes semelhanças com uma empresa pública. O ethos empresarial, de resto, não para de atrair uma certa categoria de universitários, no quadro do modelo emergente do académico-empreendedor e do angariador de fundos. Noutras circunstâncias, e simultaneamente, algumas Universidades parecem iniciar uma competição com as instituições de caridade e de solidariedade social, na busca incessante por donativos, designadamente junto dos seus antigos alunos.
Quanto à possibilidade de alienar bens patrimoniais, esta pode ser tão vantajosa quanto ruinosa, e é sempre muito dependente do contexto. Também a não obrigatoriedade de utilização das regras da contabilidade nacional decorrentes do estatuto mercantil que a Universidade passaria a ter (SEC95)[1], não parece, em si mesma, positiva ou negativa. Tudo depende dos objectivos e de garantir uma mais pública e democrática prestação de contas, respeitando regras superiores em termos de exigência e de rigor na utilização dos dinheiros públicos. O Reitor aponta ainda como vantagem da Fundação a possibilidade de a Universidade se endividar mas não demonstra por que é que o endividamento é bom. Num momento em que Portugal apresenta um elevado défice e uma elevada dívida, em que as famílias estão sufocadas com as dívidas que contraíram nos últimos anos, e depois de todos ouvirmos os problemas resultantes do endividamento, torna-se difícil perceber por que é que a possibilidade de endividamento é uma vantagem para a Universidade.
A contratação de pessoal é uma das matérias mais controversas. Se o regime de contrato de trabalho em funções públicas, e o regime de contrato de trabalho de direito privado, fossem absolutamente equivalentes, por que razão haveria distinção? E por que razão a instituição poderia passar a optar pelo segundo para os docentes contratados no futuro? Note-se, todavia, que esta opção nem sequer existe no caso dos trabalhadores não docentes, uma vez que os novos contratados sê-lo-ão obrigatoriamente em regime de direito privado.
Quem garante que a nova modalidade de contratação, regida pelo direito privado, não passará, como noutros países, a ser articulada com esquemas de diferenciação salarial e de avaliação do desempenho? É indiferente, no futuro, um corpo docente subordinado a relações contratuais diferenciadas, no limite com regras distintas e uma carreira própria, ainda que respeitando genericamente o ECDU? A precariedade e a possível fragilização das relações de trabalho são compatíveis com a autonomia científica e pedagógica do professor e investigador universitário? Basta que o actual Reitor assegure que nada disto ocorrerá? O trabalho dos académicos não é, frequentemente, incómodo para os poderes instituídos, dentro e fora da universidade? Poderá continuar a sê-lo, independentemente dos vínculos contratuais, dos processos de desenvolvimento e avaliação dos profissionais, das novas tecnologias de gestão e de remuneração das carreiras? Não será ainda mais intensificado, por efeito das metas de angariação de receitas próprias acima dos 50% do orçamento da instituição, como começa a ocorrer já nas actuais Fundações, conduzindo ao produtivismo e à mercadorização? A manutenção dos 50% de receitas próprias só poderá ser conseguida ou à custa do aumento das propinas ou da redução dos salários. Isto significa que, perversamente, a Fundação poderá induzir políticas de redução de pessoal e dos respectivos custos salariais para, dessa forma, elevar artificialmente a percentagem de receitas próprias que será contratualizada, face às dotações do Orçamento do Estado. Deste ponto de vista, quanto mais cortes nos salários e menos contratações forem feitas por verbas do Orçamento do Estado, mais subirá, em proporção, o total de receitas próprias da instituição.
A maior liberdade para gerir, sem interferências constantes e limitadoras por parte do Estado, e sem as tradicionais imposições micronormativas da tutela, pode até ser positiva e beneficiar a Universidade e a realização da sua missão. Mas é indispensável ponderar bem o acréscimo de responsabilidades assumidas e os perigos de desresponsabilização por parte do Estado, tal como os impactos muito criticáveis em termos de estrutura de governação, de democraticidade e representatividade na vida da Academia, e ainda o regime contratual dos docentes, investigadores e trabalhadores não docentes.
4. QUANTO AO FUTURO, TIRE AS SUAS PRÓPRIAS CONCLUSÕES
As questões são complexas e controversas. A análise da matéria e dos diversos quadros de racionalidade, e argumentos, em presença, é indispensável. Pretender, contudo, dissociar esta reforma da própria reforma do Estado e do correspondente protagonismo do mercado, através da introdução de novos processos de regulação das instituições e de novas modalidades de governança, de clara extracção empresarial e produtivista, seria ingenuidade ou má fé.
Pela nossa parte, não encontramos suficientes garantias democráticas, de respeito e consolidação da Universidade como res publica, de estabilidade e independência dos seus docentes e investigadores, de autonomia face ao poder político e económico, para que possamos adoptar uma posição minimamente tranquila, mesmo que não fosse entusiástica. De acordo com o documento apresentado pelo Reitor, isso faz de nós académicos inseguros, com posições imobilistas e com um entendimento distorcido do modelo. Seríamos nós os conservadores, contra a inovação e o reforço da autonomia institucional!
Não obstante a natureza épica atribuída àquela missão, seria, contudo, de uma manifesta ingenuidade acreditar que o regime fundacional se destina a atribuir mais liberdade e autonomia à Instituição, em termos de políticas democráticas, aprofundando o conceito de Universidade do domínio público e, por isso mesmo, garantindo-lhe as condições e os recursos indispensáveis ao prosseguimento da sua missão. Pelo contrário, conhecer algumas das mais radicais mudanças em curso nas Universidades europeias, em pleno processo de construção de um “espaço europeu de ensino superior” e de uma “área europeia de investigação”, não ajuda nada a adesões ingénuas e entusiásticas. Basta lembrar o que vem ocorrendo em certos Estados-membros da União: os encerramentos de importantes cátedras e departamentos, os respectivos despedimentos, a renegociação dos contratos dos professores, o aumento vertiginoso das propinas, os salários principescos dos gestores universitários, a intensificação do trabalho para além de níveis aceitáveis, a corrosão de alguns dos mais relevantes traços de uma cultura humanista e crítica. De outro modo, por que razões falariam os nossos colegas estrangeiros de uma “Universidade em ruínas”, do “pesadelo de Humboldt”, ou da “Universidade-Empresa”? Por que se perguntariam se as Humanidades sobreviverão? Por que lamentariam o que está a suceder aos departamentos de Filosofia e de História? Por que temeriam que uma boa educação universitária possa vir a sucumbir, perante o paradigma da produção de competências para a empregabilidade? E por que razão se optaria por um modelo anglo-americano fora desse contexto, quando mesmo nos EUA o financiamento público já não chega a cobrir 10% dos custos e em Inglaterra as propinas poderão aumentar mais de três vezes, discriminando negativamente as Humanidades e as Ciências Sociais, agora consideradas supérfluas?
Neste contexto, aqui deixamos à consideração de todos estas reflexões e opiniões, até mesmo para contrariar o comportamento típico do universitário na “Corporate University” que, segundo a socióloga Gaye Tuchman, da Universidade de Connecticut, quando lhe perguntam alguma coisa prefere dizer: “Não quero dar uma opinião porque não sei o que os outros pensam”. A isso poderemos chegar em breve, fundacionalmente, é nossa convicção. Não paira já no ar, nas Escolas e nos Departamentos, um certo silêncio incomodativo ou, na melhor das hipóteses, desabafos e queixumes mais ou menos surdos? Se não erramos na observação, para onde vai a Universidade Pública?
A prosseguirmos as propostas da OCDE (2006) para Portugal, após a opção pelo regime fundacional já proposto por esta organização, o caminho futuro está apontado. Será uma questão de tempo e das necessárias mudanças legislativas: apesar de continuarem a ser (parcialmente) financiadas pelo Estado, as Universidades operarão “como pertencendo mais ao sector privado”; todo o tipo de funcionários perderá a designação de funcionário público e os seus salários serão matéria de decisão exclusiva da instituição; o Reitor não será mais eleito, mas nomeado, na sequência de um concurso, pelo Conselho de Curadores; os Presidentes das Escolas, os Directores dos Departamentos e dos Centros de Investigação passarão a ser nomeados pelo Conselho de Curadores, sob proposta do Reitor; a colegialidade será substituída pela liderança unipessoal de executivos ditos “eficazes”; o sector privado deverá assegurar um financiamento crescente, talvez intermediado por certos curadores, tal como as actividades filantrópicas, embora os mecenas não abundem no país; o aumento das propinas ocorrerá para o primeiro ciclo e mestrado integrados, após a necessária revisão constitucional…O que isto implicará em termos de uma Universidade como local de trabalho científico e pedagógico é matéria para profundas preocupações.
Exagero, ou má vontade, dos críticos? Leiam o Relatório referido, releiam o RJIES e, depois, tirem as vossas próprias conclusões.
Universidade Cidadã
2010.12.15
[1] Comunidades Europeias (2002). Manual do SEC 95 sobre o défice e a dívida das administrações públicas, Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias.