28/04/11

Temeridade

O valor que não tem por fundamento a prudência
chama-se temeridade,
e as façanhas dos temerários
devem atribuir-se mais à sorte do que à coragem.

Miguel Cervantes

26/04/11

Regime Fundacional: um debate cada vez mais esclarecedor

O debate em curso na Universidade do Minho, em torno do regime fundacional, tem revelado uma certa vitalidade institucional e, se dúvidas existissem ainda, o interesse e a participação de vários professores e investigadores, através da expressão pública das suas distintas posições.

À luz do racional que adoptámos e que é já suficientemente conhecido, ficamos com a ideia de que sempre que colegas defensores da Fundação argumentam com seriedade e conhecimento do assunto, mais clarificam elementos que, para nós, são considerados negativos. Isso não é surpreendente, mas vale a pena ser destacado, até para melhor clarificar as posições em presença. É o que sucede, por exemplo, com a mais recente contribuição do Prof. J. Oliveira Rocha (Correio do Minho de 1 de Abril), uma opinião bem informada e que merece atenção. Muitas das dimensões referidas como centrais, naquele texto, parecem-nos bem colocadas e mesmo incontornáveis, embora divirjamos das conclusões retiradas, dada a natureza distinta dos referenciais políticos e axiológicos adoptados.

  • A centralidade do “regime de contrato” é evidente, mas para nós só avoluma as preocupações, face à escassa fiabilidade e à natureza incerta que uma das partes tradicionalmente apresenta, ainda para mais em fase de radical incerteza governamental, de actual e futura penúria financeira (“empobrecimento do país e contracção da despesa pública”), a que acresce a natureza confidencial, ou em qualquer caso não pública, do contrato a celebrar entre duas entidades públicas (Estado e Universidade);
  • o facto, também para nós incontroverso, mas contudo preocupante, de a relação entre o regime fundacional e a reforma britânica remeter para a actual experiência vivida nas universidades inglesas, por muitos colegas desse país considerada um inferno performativo, abandonando as universidades à sorte do mercado, desprezando áreas de conhecimento, despedindo professores, encerrando departamentos, aumentando as propinas, endividando os estudantes e as suas famílias, ou encetando relações perigosas – ver, por exemplo, texto do Prof. Hermínio Martins neste blog;
  • a natureza estratégica, mas não intrinsecamente académica ou educativa, de certo tipo de produtivismo, segundo os cânones de certas áreas consideradas competitivas (por quanto tempo?...), como com crueza, mas provável realismo, é observado por Oliveira Rocha: “As áreas não produtivas serão necessariamente rejeitadas, podendo ser extintas”;
  • a possibilidade de aumento considerável das propinas, facto para o qual temos chamado repetidamente a atenção, e que aquele autor admite como sendo certa, apontando pertinentemente o caso inglês.

É considerando as profundas alterações políticas que estão em causa, embora por nós distintamente valorizadas, que a expressão clara de professores e investigadores, trabalhadores não docentes e estudantes, com ou sem referendos, sempre nos pareceu democraticamente incontornável; e por isso a propusemos em devido tempo ao Conselho Geral, através da auscultação formal das Escolas, a qual viria a ser rejeitada, embora em nada beliscasse as prerrogativas daquele órgão, onde a sociedade também se encontra representada, à luz do modelo de governação em vigor. A alternativa é a de nem sequer querer conhecer a posição daqueles actores, mesmo que com carácter consultivo e na fase preparatória do processo de decisão, arriscando uma decisão vanguardista de um Conselho Geral dividido quanto à matéria, eventualmente contra a vontade da maioria da Academia. Como se apenas alguns soubessem o que é melhor para todos, mesmo quando foram eleitos à margem de compromissos claros quanto à decisão a tomar. De resto, é incontornável perguntar: como foi possível eleger um Conselho Geral à margem de compromissos claros com os eleitores quanto à questão fundacional? Como estamos a vivenciar as práticas democráticas na Universidade? Ou caminhamos já para uma pós-democracia gerencial?

Por muito que a Universidade do Minho tenha mudado, não nos parece que se tenha tornado irreconhecível ao ponto de se diminuir institucionalmente desta forma e de, qualquer que venha a ser a decisão do Conselho Geral, poder vir a ser confrontada, no futuro, com um défice de legitimidade que em muito transcende as questões de ordem juridico-formal, com um assunto mal resolvido, ou com uma ferida aberta que pode levar muito tempo a cicatrizar.

Sem esquecer que, face às incertezas do tempo presente, a uma eventual vitória da tese fundacional no interior do Conselho Geral poderá vir a corresponder uma falta de interlocutor governamental em tempo útil, uma mudança radical dos pressupostos políticos, a simples deslegitimação da figura, hoje sob generalizada suspeita, de fundação, ou a ausência de recursos a afectar, de que resultaria uma situação comprometedora e de grande fragilidade para a Universidade. Uma “vitória” interna da tese fundacional, mas uma “derrota” externa, contextual. Um acto de voluntarismo da Instituição de que pode vir a resultar uma situação desprestigiante ou embaraçosa.

Não obstante a nossa posição de fundo, contrária ao regime fundacional, reconhecemos que os riscos são muito mais elevados na actual situação, e no futuro próximo, de um país submerso por graves problemas políticos e económicos, do que seriam num cenário de estabilidade e de prosperidade. Não admiti-lo pode já não significar convicção, mas dogmatismo, desprezando os argumentos do outro sob o estereótipo do “medo”, quando o que era necessário era investir numa conceptualização de universidade-fundação que não fosse de uma manifesta pobreza intelectual, numa visão que fosse mobilizadora e exigente quanto à missão da Universidade, não se perdendo na eterna busca técnico-instrumental do pretenso “meio óptimo”, antes se reforçando através da adesão intelectual a um projecto e de uma decisão democrática sustentada na maioria daqueles que fazem a Academia.

É pertinente lembrar que uma Universidade não é um puro instrumento técnico-racional em busca da realização dos seus objectivos; é habitada por pessoas concretas e por múltiplas tradições científicas e culturais, visões do mundo, valores, conhecimentos e interesses. Ignorá-lo olimpicamente, a favor da pretensa superioridade de certas visões e dos correspondentes meios, ou de uma abordagem meramente funcional e adaptativa, pode significar amputá-la da sua vocação maior: a de um universo educativo de liberdade crítica e criativa, irreprimível na busca incessante do conhecimento como bem comum, suficientemente rebelde para contrariar a doxa, para afrontar poderes, para interrogar e desvelar a realidade. É sobretudo para concretizar aquela vocação de liberdade, no contexto de uma casa comum, e que é de todos, que a autonomia é imprescindível e se justifica em termos substantivos, e não por outra qualquer razão de ordem instrumental.

Com as melhores saudações académicas,

Licínio C. Lima
Membro do Movimento Universidade Cidadã
25 de Abril de 2011

12/04/11

Por uma Universidade não aprisionável por interesses particulares - um texto do Prof. Hermínio Martins

Por cortesia do Prof. Hermínio Martins, Emeritus Fellow do St Antony´s College da Universidade de Oxford e antigo membro da Assembleia Estatutária da Universidade do Minho, divulgamos uma síntese do artigo que será publicado no próximo número da revista americana Society (publicada pela Springer-Science) sobre as relações perigosas entre a "Universidade Empresarial", algumas actividades de angariação de fundos e certos interesses nada académicos, a propósito de uma das mais prestigiadas instituições universitárias que, no entanto, parece não ter conseguido resistir aos apelos da competitividade global a todo o custo e à necessidade de obter uma maior autonomia financeira.
Como temos defendido, os padrões de governação gerencialista comprometem o futuro de uma Universidade das ideias, crítica e não aprisionável por interesses particulares, mesmo quando apresentados sob o signo do interesses geral. E é neste sentido que continuamos a pensar que, se cada vez mais funcional e meramente adaptada ao meio, a Universidade não nos servirá para nada.



THE LSE DISASTER

The most notorious example of the public “impact” demanded of universities by the UK Government has been, perversely, the huge worldwide publicity recently received by the London School of Economics and Political Science [LSE].
For a few weeks (February-March), the LSE was a world cynosure, but not for good reasons. Rather, this was the first-ever, truly global, corporate university scandal, certainly the first to affect a university with the kind of national and especially international reputation the LSE has enjoyed for several decades.
The scandal arose initially from the donation by the Foundation run by Saif al-Islam Gaddafi, the favourite son of the Colonel, of 1.5 million pounds to the Centre for Global Governance at the School. Accepted by its governing body in 2009, the decision was later rescinded owing to the torrent of adverse and strident media comments the acceptance provoked in the British and foreign media.
The Director of the School, Sir Howard Davies, who had backed the decision to accept the donation, felt compelled to resign on March 3, owing to the “reputational damage” inflicted on the School by that “error of judgment”. At the same time, a comprehensive independent inquiry into the whole affair by Lord Woolf, a former Lord Chief Justice, was announced.
Ever since the Blair Government had made Libya reasonably respectable, many British universities had entered into profitable arrangements for the education and training of Libyans. But the LSE, of all British academic institutions, suffered the most revulsion against its Libyan connections. The unique intellectual dimension of its Libyan involvement and the stature of the scholars implicated in the affair, may explain why.
Most startling pehaps were the declarations of Professor Lord Giddens, the previous Director of the LSE, in 2006 and 2007. In a couple of newspaper articles arising out of two visits to the country, the word-renowned sociologist told the world that the Gaddafi rule was fairly benign as dictatorships go and expressed his belief that Libya could become the Norway of North Africa under the Colonel’s guidance. He even saw parallels between his “Third Way” and the teachings of Gaddafi’s Green Book! (the visits had been arranged by an American consultancy with Harvard connections, which also brought such American luminaries as Profs. Joseph Nye, Benjamin Barber and F. Fukuyama to Tripoli, aiming to improve the image of the Libyan dictatorship).
The famous and prolific theorist of globalization, Prof. David Held, made the preposterous claim that democratic values were at the core of Saif Gaddafi’s convictions and expressed his belief that we was going to lead Libya into democracy. He also joined the Board of the Gaddafi International Charity and Development Foundation which made the donation to his own Center of Global Governance at LSE.
Saif was admitted to the LSE as a graduate student, first for an M.Sc., and then for a PhD. Did he have the proper qualifications for admission to LSE as a graduate student? The matter remains obscure. Should he have been admitted at all, qualified or not? Admitting Saif, someone complicit with his father’s brutal regime, was giving the Gaddafi clan a foothold in prestigious Western academia. It was always a fraught decision, as shown, for example, by his need for one or more bodyguards when attending lectures in the campus. Was his PhD thesis really written by him? It is not clear whether it was, and the matter may never be fully cleared up.
Within a year of the PhD being approved, the donation was made. Naturally, there has been much suspicion arising out of the short interval of time between granting a person a PhD and then accepting a large donation from that person. Prof. Fred Halliday, a Professor of International Relations at LSE who had extensive knowledge of Libya and was fluent in Arabic, was the one academic to speak against acceptance. He warned that Libya was a corrupt kleptocracy most unlikely to be reformed by the ruling clan. His advice was overruled.
UK universities, lacking large endowments, with much reduced funding from the State, and bereft of philanthropic donations from within the country, may be forced to accept “gifts” from unsavoury regimes. But some universities, faced with dire financial straits, have refused such donations. The LSE was in good financial shape: it did not need this particular donation to keep afloat.
All in all, this is a sad case of a university’s inability to resist the temptations of big money, supposedly without strings attached, but which in fact tainted the LSE (even Professor Lord Desai, who had gone along with it all, now speaks of “blood money”). Regrettably for the good name of the social sciences, it was also a case in which world-famous social theorists succumbed to the classical illusion that they could become mentors of “enlightened despots” in countries of which they betrayed no understanding.
Universities can be undermined from within as well as from without: a single lucid and courageous person like Prof. Halliday may be unable to prevent actions which shake the world’s faith in the intellectual integrity of a university and its scholars. And when that happens, all is lost.

Hermínio Martins