Os professores e investigadores que integram a Lista B reuniram-se em torno de uma ideia central: a ideia de uma Universidade Cidadã.
Não se trata, para nós, de adoptar uma expressão decorativa, ou um slogan, sem consequências de maior. Pelo contrário, temos razões para crer que a expressão da cidadania democrática e da participação activa no governo das Universidades, tal como da liberdade académica, se encontra em processo de erosão e pode, a breve trecho, ser confrontada com importantes obstáculos.
Uma Universidade heterogovernada, com uma autonomia sitiada, isto é, cercada por variados instrumentos de regulação (do insuficiente financiamento público aos novos processos de avaliação externa de feição estandardizada), dotada de docentes e investigadores eventualmente receosos de assumir a sua liberdade académica e cívica, revela-se uma contradição nos termos. Não seria já, em tal caso, verdadeiramente uma Universidade.
Recorde-se que, ainda há poucos dias, o reitor da Universidade de Lisboa afirmava: “o medo ensaia um regresso às nossas instituições”. Basta, com efeito, pensarmos nos efeitos que a precariedade, a ideia de excedentários na administração pública, o espectro dos despedimentos, a crise de financiamento, o congelamento de concursos, ou a inexistência de vagas nos quadros, podem vir a produzir na generalização de um sentimento de insegurança. Nada de mais contrário à assunção do risco, da liberdade intelectual, do ensaio de tentativa-erro que são incontornáveis numa Universidade que cria, educa, intervém.
Estes são, certamente, problemas que cada Universidade dificilmente poderá afrontar de forma isolada, fora do quadro das políticas governamentais. Mas ter instituições politicamente fortes, democraticamente legitimadas, fará toda a diferença.
Pensamos que o problema magno da Universidade Portuguesa, hoje, não é sobretudo um problema de gestão, ainda que haja certamente muito a melhorar nesse capítulo. Não nos iludamos, porém: o nosso maior problema é de ordem política. De políticas públicas para a educação superior, de relações com a tutela e com novas instâncias de meta-regulação em emergência, de governo democrático das instituições e de suas unidades internas, de direitos e de liberdades dos docentes e não docentes, de autonomia e de participação, em suma, de cidadania.
A emergência de paradigmas organizacionais e de gestão de tipo tecnocrático, de inspiração empresarial e mercantil, não se revela adequada a uma concepção de Universidade como “polis”, como cidade em busca do seu autogoverno democrático e responsável, participado pela comunidade, prestando contas públicas da sua actuação. O problema é que este ambiente cidadão se revela absolutamente indispensável à educação universitária e à investigação.
O ideário que apresentámos é, a este propósito, muito claro e sem ambiguidades. É esta a concepção de Universidade Cidadã que defendemos.
Mas um ideário não é um programa de governo, não é um projecto de estatutos pronto ou quase pronto a usar, e muito menos o organigrama da futura organização universitária. Isso revelaria um fechamento às alternativas e ao debate, aos outros, à construção colectiva, a partir do exercício de um poder solitário, ou mesmo de uma posição de arrogância tecnocrática própria de quem conheceria e teria, antecipadamente, todas as soluções que nos interessam. Cremos que ninguém tem, nem acredita em, soluções providenciais. Insistimos, por isso mesmo, em que o indispensável é apresentar propostas muito concretas e sem ambiguidades sobre a concepção de Universidade e sobre os princípios centrais que devem orientar os novos estatutos. Propostas a comunicar e a debater com todos, não comunicados que afirmam já, em detalhe, como deve ser, ou como vai ser. Neste contexto, concretizar em excesso pode contribuir para fechar o debate ou para evitar o diálogo, especialmente a partir do momento em que nos convencemos que encontrámos a solução óptima. Não nos parece que em matérias como estas alguém possa atingir a racionalidade olímpica, típica dos deuses.
Um optimismo crítico
Há quem diga que a nossa visão de Universidade é muito crítica e pessimista. Crítica, sem dúvida, nem conhecemos outra forma de ser universitário e, em todo o caso, quem teria razões para ufanismo face aos problemas do presente e às inquietações perante o futuro? Mas pessimista não é, certamente que não, ou não estaríamos aqui
Em que reside, então, o nosso optimismo crítico, digamos assim?
Exactamente na ideia de que, embora quase sempre submersos pelas actividades quotidianas de ensino e de investigação, nós, universitários, temos apesar de tudo limites face a dinâmicas, externas ou internas, que nos menorizam, proletarizam ou alienam. Mesmo quando levamos demasiado tempo a reagir.
Muitos de nós dizem-se sem vocação, e outros já afastados, da política e da gestão universitárias, mas há evidentemente limites para esse afastamento. Uma coisa é não exercer em determinado momento cargos de direcção ou gestão, e outra bem distinta é viver alheado da realidade, como se a docência e a investigação não dependessem também de condições políticas e organizacionais e não constituíssem, elas mesmas, actos de cidadania.
Ao professor do ensino superior, que é um investigador que ensina, nas palavras do célebre geógrafo Orlando Ribeiro, não lhe é nunca indiferente o governo e a estrutura da sua escola, sobre os quais, de resto, não pode deixar de reflectir criticamente e de tomar posição, sob risco de se alienar. Sabemos que a capacidade de pensar criticamente a Universidade e de engendrar alternativas está muito mais distribuída entre nós do que alguns sectores podem imaginar.
Todos reconhecemos que a autonomia e a liberdade académica são indispensáveis ao exercício da nossa missão. Não há autonomia universitária sem efectiva autonomia e liberdade académica dos docentes e investigadores universitários: autonomia de concepção, como acto de interferência legítima na governação da Universidade, como participação verdadeira, ou seja, como participação nos processos de decisão. Mas não como mera participação na gerência dos outros, uma espécie de autonomia tutelada, de tipo meramente executivo ou operacional, do género: sejam autónomos na execução das orientações que nós já decidimos, mesmo sem a vossa participação.
O que há para fazer?
Há, neste momento, muito a fazer nas nossas Universidades e, concretamente na Universidade do Minho:
- impedir que a solidariedade e a concertação entre unidades orgânicas seja esmagada pela rivalidade, pela centralização de poderes e pela introdução de novas hierarquias e estatutos diferenciados;
- evitar que as unidades orgânicas evoluam para um estatuto de subordinação e de menoridade, sendo apenas centrais no momento da execução eficaz e obediente das directivas superiores;
- contrariar uma leitura seguidista e restritiva do RJIES, mas, pelo contrário, como dizia há tempos um reitor, “ir além da lei…aproveitar todas as oportunidades que ela abre”;
- insistir no princípio constitucional da gestão democrática das universidades e de suas unidades, resistindo à facilidade das nomeações, ao carácter prático das direcções monocêntricas e unipessoais, às lógicas da unidade de comando ou das cadeias hierárquicas;
- conceder maior protagonismo e representatividade às unidades de investigação, pois a investigação é indissociável do ensino superior, tal como a cultura, entendida substantivamente e não como ornamento;
- reforçar o estatuto das escolas em termos de autonomia científica, pedagógica, administrativa e de gestão e, desta forma, acentuar o carácter policêntrico e descentralizado da organização da Universidade;
- reforçar o prestígio, a legitimidade e a capacidade negocial do reitor, não em termos meramente gestionários, como se ele fosse um director-geral ou um “chief executive officer”, mas antes em termos de legitimidade democrática e de defesa do interesse público;
- valorizar a nossa história como instituição e as nossas especificidades organizacionais, porém não ao ponto da celebração mais ou menos paralisante ou da resistência à mudança das estruturas de poder, admitindo que é necessário dar passos em frente, romper, inovar, de acordo com a concepção de Universidade que adoptarmos colectivamente;
- não ter receio da diversidade organizacional no interior da Universidade e admiti-la como consequência normal face à diversidade de que toda a Universidade é composta, em termos de tradições e de características científicas, culturais, tecnológicas, desta forma contrariando a tendência para a imposição de regras próprias de certos saberes a outros saberes e modos de ser e fazer universitários.
É isto, afinal, que é mais típico da Universidade enquanto “arena” pública, política e cultural, feita de diversidades, policêntrica, capaz de se governar democraticamente e de se abrir à sociedade e à comunidade envolvente
Nesta concepção de universidade, ensinar e investigar são actos de liberdade e de responsabilidade, colegialmente aferidos, dentro e fora da instituição. Não são, seguramente, apenas actos e gestos técnicos passíveis de mercadorização e de gestão numa lógica produtivista e empresarial.
Temos em aberto, nos próximos meses, a possibilidade de decidir o nosso caminho em termos de modelo organizacional e de governo para os próximos anos; por que haveríamos de desprezar essa possibilidade tão preciosa?